Missão Impossível virou uma Guerra Santa: Tom Cruise vs Inteligência Artificial

Entretenimento

Guilherme Jacobs

Uma vez descrito como “a manifestação viva do destino” e de “caos encarnado”, Ethan Hunt é colocado, tanto em Missão: Impossível – Acerto de Contas quando na continuação, O Acerto Final, como um salvador da humanidade. Ele, claro, tem a missão de literalmente salvar o planeta, mas há um ar messiânico em sua volta que eleva essa ideia para o campo espiritual e humanitário. As hipérboles só se encaixam porque os feitos do agente da IMF são dignos de tais caracterizações. Apresentados com realismo o suficiente para acreditarmos em suas execuções – pelo menos dentro desse mundo – mas encaixados no contexto da impossibilidade para não perder seu impacto narrativo, os momentos mais grandiosos dessa franquia só não são mais ousados do que os sonhos de seu astro, Tom Cruise, para o cinema e o mundo.

Por causa do sucesso de Top Gun: Maverick em 2022, Cruise foi apontado como salvador do cinema hollywoodiano por figuras totêmicas como Steven Spielberg, e sua insistência contra o lançamento de filmes em streaming e a favor de efeitos práticos tem se tornado um refresco numa indústria gradualmente mais digital em sua distribuição e produção. Entre as lendárias batalhas contra a Paramount para conseguir o que quer e sua autodenominada posição como embaixador de blockbusters (inclusive para lançamentos de outros estúdios, como Pecadores), Cruise está construindo a imagem de um herói que salva as pessoas não só dentro da tela, como também por trás delas. A frase mais marcante do novo Top Gun vem quando perguntam ao seu Maverick se ele sabe o que acontecerá caso ele quebre as regras da marinha. Ele quer mesmo fazer isso? Sua resposta? “Eu sei o que acontece com todo mundo se eu não fizer.” Os últimos filmes de Missão: Impossível são abastecidos por essa convicção.

É um não-tão-sútil, mas não-tão-óbvio manifesto. Se ele não fizer isso, acabou o cinema. Cruise passou a acreditar que, assim como Ethan Hunt tem a capacidade de salvar o mundo não importando as circunstâncias, ele é capaz de salvar o cinema de si mesmo com uma cena de ação maluca por vez. Assim como Ethan Hunt te faz acreditar na possibilidade do impossível, Cruise é tão genuíno, estranho e apaixonado em sua mensagem, que acabamos nos convencendo.

Em Missão: Impossível – Acerto de Contas, esse embate se tornou ainda mais literal. O vilão, que retorna em O Acerto Final é, literalmente, uma inteligência artificial capaz de criar deepfakes, apagar imagens, invadir qualquer servidor do mundo e prever comportamentos. Através de seus agentes humanos, a Entidade — um algoritmo cuja explicação é clara o suficiente para entendermos sua proposta mas abstrata o suficiente para permanecer longe de comparações com Skynet e Ultron — é vista por Ethan Hunt e seus colegas Benji (Simon Pegg), Luther (Ving Rhames) e Grace (Hayley Atwell) como um anti-deus que representa o fim da humanidade. Em determinado, a tal Entidade é descrita como um “Senhor das Mentiras”. A única forma de vencê-lo é à moda antiga. Comunicações analógicas, truques de maquiagem (as máscaras retornam, claro) e, mais importante, o bom e velho improviso. Contra esse programa frio e sem personalidade, só o espírito humano tem chance.

Não é preciso ser expert na indústria de Hollywood para entender o que Cruise e o diretor Christopher McQuarrie querem dizer. Numa franquia cujas principais sequências de ação remetem aos primórdios da arte quando Buster Keaton pulava de vagão a vagão em trens reais (coisa que Cruise faz em Acerto de Contas) ou se equilibrava nas asas de um avião bimotor (o clímax de Acerto Final) sem imagens renderizadas, a dupla argumenta a favor do cinema feito por humanos, usando CGI de forma responsável para retocar cenas, mas nunca para substituir o elemento principal — nós. Bom, neste caso, Cruise. Quando Ethan Hunt ousa dizer que a Entidade está com medo, só faltava vermos o grande logo da NetflixDisney+ ou HBO Max na tela, suando diante do caos encarnado, a maior ameaça à sua existência: Tom Cruise, o avatar cinema.

É a tacada mais ousada de uma franquia que mais uma vez se mostra como o representante do que blockbusters podem ser. Talvez alguns fãs considerem a ideia “sci-fi demais” para M:I, e a falta de claridade em torno do que a Entidade é sem dúvidas incomodará alguns. O valor temático, porém, supera o absurdo da proposta. Basta entendermos o que está em jogo, emocionalmente e em termos globais, e o quão difícil será vencer.

O maior testamento para a qualidade destes filmes é como eles nos envolvem nisso tudo. É inconcebível imaginar Tom Cruise autorizando um dia a produção de um filme no qual ele perde, mas mesmo sabendo que o herói sempre vence, caímos na ilusão construída através de momentos frenéticos e diálogos entregues por atores que parecem realmente acreditar no que dizem. Enquanto as lutas de super-heróis parecem destituídas de risco, Missão: Impossível consegue criar em nós a quantidade necessária de tensão para acreditarmos, por um segundo, que a nova aventura de Hunt pode enfim se provar complicada demais para o bom agente. A forma criativa como McQuarrie e seu colaborador de roteiro Erik Jendersen encontram de intensificar o perigo só é rivalizada pelas escapatórias divertidas encontradas para tirar Hunt e sua turma do meio disso.

Aliás, como o crítico David Ehrlich apontou, as já emblemáticas cenas de Cruise correndo parecem, nesta dupla final de filmes, mais e mais pautadas na ideia dele fugindo de algo, e não tentando alcançar um objetivo. O time de Hunt está em fuga, tentando escapar desse futuro tão teimoso em substituí-los pelo mais eficiente, mas menos interessante.

Tal futuro, pelo menos aos olhos de Cruise, é uma luta entre verdade e mentira. O linguajar bíblico está muito presente nos filmes recentes, e a Entidade é o equivalente de um anti-deus cuja proposta consiste em remodelar o mundo à sua imagem (ou falta dela). Para Cruise, essa guerra santa começa no cinema. A criação de “arte” por inteligência artificial é o pecado original, e se o praticarmos, nunca mais saberemos o que é, ou não, real. O evangelho da salvação, então, é anunciado pelo o ato de colocar o próprio corpo dos atores em jogo na hora de executar uma cena. As mais famosas peças de divulgação de Missão: Impossível, mais até do que trailers, são os vídeos de bastidores das grandes façanhas de Cruise, que repetidamente sacrifica a segurança de seu corpo em nome do nosso divertimento. É difícil não encarar os feitos (de Hunt e Cruise) como uma declaração. Realidade e ficção se aliam. “Isso é verdade. Eu estou realmente aqui. Nada que a IA fizer pode substituir isso”, ele parece dizer. De fato, quando sabemos que algo não é real, o deslumbramento se vai. É claro que há cabos segurando Cruise e prevenindo uma queda fatal, mas a magia desses filmes está em existir no limiar da segurança.

A fé inabalável de Ethan Hunt no poder de derrotar qualquer inimigo, e a crença de Cruise no quão insubstituíveis seres humanos são estão enfim aliadas. Inteligência artificial é o adversário de ator e personagem, e eles estão dispostos a morrer para vencê-lo. Muito se brinca sobre a suposta disposição de Tom Cruise em se matar fazendo filmes. Missão: Impossível – Acerto de Contas e Acerto Final recontextualizam essa ideia. Se essa tragédia, um dia, ocorrer, então ela será um ato sacrificial. Tom Cruise nos salvará, mesmo que tenha que morrer para isso.

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