Enquanto Lula ‘fala para base’, Haddad continua agindo de acordo com sua agenda. Especialistas ouvidos pelo g1 explicam como interpretar as manifestações diferentes de presidente e seu ministro da Fazenda.
Por Raphael Martins, g1
Não foi a primeira vez que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, veio a público para acalmar os ânimos dos agentes financeiros. A cena é tão comum que a fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de que seria “difícil” cumprir a meta de déficit zero em 2024, nem chegou a causar uma grande reação do mercado.
Logo após o fim de semana, o ministro fez questão de reforçar que a equipe econômica segue perseguindo a missão de equilibrar as contas públicas e de manter-se dentro do que prega o arcabouço fiscal. Mercados voltaram às trajetórias, mais de olho no rumo dos juros americanos que em novas questões internas.
A analista de renda fixa e sócia da Nord Research, Marília Fontes, chegou a publicar um vídeo nas redes sociais que dá a tônica de como analistas têm visto os sinais trocados vindos do governo: enquanto Lula “fala para base”, Haddad continua agindo de acordo com sua agenda.
“Haddad não faz contra a vontade do presidente. Lula é pragmático e entende que a economia tem que ser respeitada. Mas ele fala até o limite do que é aceitável”, diz Marília em entrevista ao g1.
A economista usa o próprio exemplo da semana. Depois de dizer que não zeraria o déficit no ano que vem — mesmo sabendo da “disposição” de Haddad —, o presidente da República destacou que não deseja abrir o ano de 2024 com cortes em investimentos, a exemplo de obras de infraestrutura.
“Eu não quero fazer corte de investimentos de obras. Se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que que é? De 0,25%. O que é? Nada. Absolutamente nada. Vamos tomar a decisão correta e vamos fazer aquilo que vai ser melhor para o Brasil”, disse Lula.
Para Marília, os agentes financeiros já previam um déficit deste tamanho, e Lula sabe disso. “Por isso [o mercado] não está se mexendo tanto. O que acontece agora é algo esperado. O que não querem é uma piora do que está previsto”, diz.
A opinião é compartilhada por outros analistas ouvidos pelo g1: as reações do mercado estão mais brandas porque se cristalizou que Lula acena para os eleitores, mas não discorda dos rumos da economia conduzidos por Haddad.
Ainda assim, sobre o episódio da meta fiscal, Haddad voltou a garantir que não há nenhum “descompromisso” do presidente Lula.
“A minha meta está estabelecida. Vou buscar o equilíbrio fiscal de todas as formas justas e necessárias para que tenhamos um país melhor”, declarou o ministro Haddad.
Enquanto Lula sinaliza para o eleitorado, Haddad tem respaldo em declarações como essa dos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Quem também se manifestou foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, dizendo que alterar a meta neste momento geraria “muita incerteza”.
Mas a história vai além. Haddad foi o fiel da balança também em ao menos duas situações-chave para preservar apoios à agenda econômica: durante os ataques de Lula a Campos Neto no início do mandato, e quando se ventilou que o governo poderia promover uma alteração das metas de inflação.
Enquanto Lula subia a temperatura, Haddad tratava de baixar. Mas, para o cientista político Lucas de Aragão, sócio da Arko Advice, é importante notar que a maioria das pautas mais complexas — revogar a reforma da previdência, a trabalhista e a autonomia do Banco Central — sequer foram propostas.
“A mudança mais brusca que tentaram fazer foi a do marco do saneamento. Ela foi recebida muito mal pelo Congresso, que forçou o recuo”, lembra o analista.
“Muitas das falas do Lula têm como objetivo enviar recados ao eleitor e acalmar setores do PT. Mas, claro que, como presidente, há momentos em que ele se impõe — como se impôs ao próprio Haddad no início do mandato em relação à desoneração dos combustíveis”, afirma de Aragão.
Para Fernando Siqueira, chefe de análise da Guide Investimentos, outra característica importante para filtrar as informações dentro dos discursos do presidente é ter em mente que Lula sempre gostou de ouvir diversos pontos de vista sobre os assuntos de governo.
Nesse sentido, é comum que suas falas tenham mudança de postura com o decorrer dos fatos. O próprio Haddad é um dos auxiliares de Lula que mostram que são ouvidos pelo chefe — tanto que o próprio Lula passou a afirmar já na semana passada que o governo terá “estabilidade fiscal”.
“Quando o presidente fala, somos obrigados a parar e escutar. Tem esse lado ruim, de quando ele fala o que pensa e se opõe ao próprio governo. Mas o lado bom é que, depois [de ouvir auxiliares], ele volta atrás sem problema nenhum”, diz Siqueira.
“É preciso prestar atenção, mas sabendo que nem tudo vai acontecer conforme ele fala.”